Sonhos limitados
- 10/05/2017 às 19:00
- Kalil Potenza
Seus óculos levemente ovalados, de grau pequeno e lentes relativamente finas, revelavam seus olhos cansados e olheiras não tão discretas. Após anos de magistério, muitos dos quais realizados a duras penas, com alunos confusos, ora rebeldes, ora adoradores de Sócrates, Flávio, que às vezes gosta de ser chamado pelo seu pseudônimo Claudio, contemplava os pôsteres de sua banda favorita: Kiss.
Logo no início seu pseudônimo chamou a minha atenção: seria Claudio seu nome dos sonhos? Um possível adjetivo, visto que o significado de tal nome é “coxo”, “manco”? Ou apenas sua admiração pela história romana e que, segundo estudos onomásticos e etimológicos, deriva de uma importante família romana, da qual foram formados vários imperadores? Para a minha surpresa, Claudio era apenas um nome, sem significados profundos nem oriundos de qualquer mistério Illuminati ou uma possível teoria da conspiração.
Seus cabelos, pretos e grossos, com fios renovados a cada dia, denotavam sua jovialidade embutida em suas leves rugas de expressão e sua rotina corrida e inebriante aos olhos de meros mortais. Castanhas escuras eram suas lentes para o mundo, repletas de enigmas e eventos passados, dos quais preferia não muito comentar. Suas mãos, grandes e firmes, com leves calos na ponta, entregavam o seu amor pela guitarra e demonstravam que sua força de vontade era maior do que uma rotina atribulada e, mesmo nos seus dias mais caóticos, sempre havia alguns minutos para que o som maravilhoso das notas musicais tocasse o seu interior e lhe lembrasse que o mundo vai além dos humanos, que existe algo a mais do que apenas a podridão mundana.
Unhas claras e bem cortadas, dentes limpos e radiantes e suas roupas estonteantes, demonstravam que a música, apesar de ser sua maior e mais importante amante, não lhe rompera a ponto de deixar sua higiene em segundo plano e conquistar a espessa camada de sujeira embaixo de sua queratina que alguns grandes músicos têm.
Flávio (ou Claudio, sinta-se à vontade para me chamar como preferir, ele disse) vestia-se, na maior parte do tempo que nos cruzamos, com uma camisa branca, calça jeans e sapato social preto que, pelo visto, tinham mais de dois anos de vida, apesar de serem bem cuidados. A sola desgastada entregava a história por detrás da graxa sabiamente aplicada no couro vindo de um animal selvagem e rebelde, preto como a noite e sedento por sangue como um vampiro. Seria Flávio o retrato desse animal quando jovem?
Claudio sugeriu que nos encontrássemos no restaurante localizado dentro do prédio da Sala São Paulo no dia seguinte a minha solicitação de uma entrevista, e assim concordei. Nunca tinha comido nesse lugar e, apesar de saber das delícias que ali vivam, as cédulas azuis estavam em falta durante a minha juventude. Ao chegar no local, nem precisei questionar a recepcionista sobre em qual mesa eu sentaria. Ela se adiantou quando notou a minha aproximação e me avisou “o senhor Claudio lhe aguarda, por favor, me siga”. Fiquei surpreso com a recepção pronta e inesperada, afinal de contas estava acostumado com lugares mais simples e acessíveis aos mortais.
Após longos e numerosos passos, a moça trejeitada com uma calça preta social, camisa branca e blazer cinza, apontou para uma mesa no fundo, distante de quase todo o sinal de vida possível dentro daquele ambiente e, logo, notei que Flávio ali estava, lendo o que parecia ser um jornal de um papel ralo e antigo, dada a sua cor amarelada. Agradeci-a pelo encaminhamento e logo cumprimentei Flávio, no qual esse me pediu desculpas por não ter se levantado, pois não havia notado a minha presença dada a sua concentração nas notícias.
Sentei-me e prontamente um garçom chegou perto da mesa e questionou qual bebida nós tomaríamos. Pedi uma coca, repleta de açúcares e um possível início de diabetes, enquanto que Flávio ordenou uma água com gás e limão espremido em seu copo. Ordenou, pois, tamanha era a elegância daquele homem naquele momento que ninguém se atreveria a desrespeitá-lo enquanto estivesse vivo. Sua calça social azul escuro, camisa rosa, paletó azul escuro, cinto preto e o mesmo sapato social preto que usava com suas calças jeans estava presente em seus pés.
Comecei com uma pergunta simples e direta: por que está tão bem vestido hoje, Claudio? E ele, direto ao ponto, me respondeu que iria assistir a um concerto dentro da Sala São Paulo e que, por ser um momento muito especial, gostava de se vestir de acordo com a ocasião, quanto mais importante, mais elegância demandava. As bebidas chegaram e um brinde ao dia belo e chuvoso que fazia foi concretizado.
Sem mais delongas, comecei a questioná-lo sobre sua vida musical, porquê a largara e como se tornara um professor universitário. Durante toda a sua fala, uma frase chamou a minha atenção: música e sonho são duas coisas que andam bem longe. Explico. Claudio crescera em uma família de músicos, todos com seus dotes, um pai violeiro, uma mãe pianista, avó violinista e avô baterista. Apesar de ter o sonho de seguir na carreira, Claudio fez uma escolha: ter uma família, ser bem-sucedido e viver uma vida plena, evitando ao máximo contratempos e desalentos para ele e sua família, lutando contra crises e provendo tudo do bom e do melhor para os integrantes de sua casa. Seu dote era com a guitarra. Claudio gostava de rock e não de música clássica. Kiss, uma de suas bandas favoritas, era o reflexo perfeito do seu interior, rebelde e maduro, revolucionário e conservador.
Existem músicos bem-sucedidos com o estilo de vida que Claudio procurava, mas o caminho até lá não era difícil, mas sim quase impossível. Nesse momento questionei se o impossível não é só questão de opinião, como nosso velho conhecido Charlie Brown Jr cantava, no que Claudio afirma veementemente “o impossível faz parte da vida, os sonhos também têm os seus limites”. Claudio estudou em uma universidade particular, graduou-se em letras, fez mestrado em antropologia e doutorado em Machado de Assis. Desde cedo foi dar aulas na universidade, dispensando colégios públicos e universidades estaduais ou federais, mas sim, investiu no ensino privado. Conseguiu alcançar cargos altos com muito trabalho duro e noites mal dormidas, mas hoje seu cenário é exatamente o que ele procurava: uma família tranquila, uma casa aconchegante e comida à beça.
Claudio deixa uma lição interessante: sonhos são necessários, mas até que ponto “o impossível é só questão de opinião”?